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O 25 de novembro e o apagamento da história

  



            

A viragem ideológica que se tem dado nas últimas décadas à direita tem profundas e variadas consequências. Na economia o neoliberalismo está de tal modo enraizado que mesmo as opções que nos 30 gloriosos anos seriam consensuais hoje são uma loucura de extrema-esquerda (taxação pesada dos rendimentos mais elevados, nacionalização de setores chaves etc.). Também na interpretação histórica se vê a atual supremacia de direita, como se comprava pela recente reinterpretação do valor significado do 25 de novembro.


              A primeira coisa que devemos compreender é o contexto internacional. A revolução portuguesa decorre durante a Guerra Fria, a Guerra do Vietnam estava a chegar ao fim e tinha debilitado consideravelmente o estatuto dos EUA, em 1973 o Presidente Socialista democraticamente eleito Salvador Allende tinha sido derrubado num golpe militar apoiado pela CIA, em 1968 dá-se o famoso Maio de 68 em Paris, que se alarga além fronteiras, por exemplo para Itália e até Portugal em 69. A Europa estava ao rubro e o socialismo (que deve ser encarado com um sentido extremamente largo) era o sabor do momento


               O 25 de Abril teve a originalidade de ser realmente independente da guerra fria, mas nem por isso era imune. Deu-se imediatamente uma luta por relevância política. O 1º de maio de 1974 mostra a esquerda em força nas ruas, mas o General Spínola, conservador e de direita é quem assume a presidência e desde muito cedo tem conflitos com o MFA. A mais aberta confrontação entre Spínola e a esquerda vai-se dar no 28 de setembro de 1974, quando Spínola procura convocar uma manifestação de grandes dimensões que reforça-se a sua posição política, mas que fracassa e resulta na sua demissão. A 11 de março de 1975 vai-se dar uma segunda tentativa de golpe por parte de Spínola mais uma vez fracassada, resultando no seu exilio. Os dois golpes fracassados não acabaram com a violência, esta manteve-se no chamado verão quente em muito impulsionado pela formação do MDLP presidida pelo próprio Spínola e com ilustres figuras como José Miguel Júdice (hoje comentador televiso na SIC) e Duarte Pacheco Amorim (hoje deputado do Chega), uma organização ligada a dezenas de ataques ataque terrorista, nomeadamente a sedes do PCP e outros partidos de esquerda, à embaixada de Cuba e que vai em resultar em várias mortes. 


  No panorama geopolítico aquando do 25 de abril, Portugal (membro fundador da NATO) estava firmemente na esfera de influência americana, apesar das divergências relacionadas com a Guerra Colonial. Para a URSS uma intervenção direta em Portugal seria o atravessar uma clara linha vermelha, da mesma maneira como não tinham intervindo no Chile, ou os EUA não tinham intervindo na Hungria. Para os EUA a reação dividiu-se: por um lado estava a secretaria de Estado liderada por Kissinger que via em Portugal o risco iminente de se tornar comunista ou pelo menos de ter demasiada influência comunista arriscando “infetar” a Espanha, França e a Itália. Chegou-se a considerar “abençoar” uma invasão vinda de Espanha, mas o principal plano seria a independência dos Açores (que tinham um papel estratégico para os EUA) e o isolamento internacional de Portugal. Por outro lado, o embaixador americano em Portugal que seria depois vice-diretor da CIA Frank Carlucci achava que isso seria perder Portugal para sempre e que o apoio ao PS, e a intervenção da Igreja Católica seriam a verdadeira solução (apesar de se ter recusado a esclarecer como tinha apoiado o PS).

              

Estes dois parágrafos (excessivamente abreviados pela natureza deste artigo) servem para demonstrar as correlações de forças dentro do 25 de abril e a intervenção dos agentes externos, mas não respondem ao que foi o 25 de novembro. O 25 de novembro surge da continuação deste conflito de forças. Nesta altura com a exceção do CDS todos os partidos diziam-se socialistas (inclusive o PPD -hoje PSD- que defendia uma economia onde o Estado controlasse os setores chaves) mas alguns setores da esquerda desconfiavam da honestidade desta defesa do socialismo. A tensão vai aumentado dos dois lados, Vasco Lourenço, que na altura participou no abafamento do 25 de novembro mais tarde chegou a afirmar: “eu admito hoje que se a situação não estivesse desbloqueada e não tivesse aparecido o 25 de Novembro, o Eanes, ao arrepio do grupo dos Nove, provavelmente teria avançado para um plano ofensivo”. Ou seja, qualquer um dos lados podia ter começado as movimentações militares. O facto, foi que quando se dá o 25 de novembro ele é depressa isolado. O PCP sendo a organização mais organizada e extensa de esquerda era imprescindível para a mobilização de qualquer movimentação de massas de apoio ao golpe, porém não apoia a movimentação militar, defendendo antes uma solução política, dando indicações aos seus membros para não se juntarem e enviando dirigentes para pedir a “Otelo que não se metesse em aventuras”, Otelo, uma figura sempre associado ao 25 de novembro, dado que a sua substituição por Vasco Lourenço no comando da Região Militar de Lisboa vai provocar a insurreição dos paraquedistas, não tem mesmo assim uma participação claro, depois de ter estado incontactável compareceu à convocação de Costa Gomes para Belém e não liderou nenhuma insurreição como se temia.


               O sucesso das forças moderadas no 25 de novembro não pode apagar o facto de que o 25 de abril e o processo seguinte foi predominantemente de esquerda. A Constituição de 1976, aprovada por todos os partidos exceto o CDS afirmava que Portugal estava no caminho para o socialismo. Novas formas de coletivização da economia e democracia estavam em curso como as Unidades Coletivas de Produção, as nacionalizações eram legalmente protegidas e só iriam ser desmontadas nas décadas seguintes, os sindicatos cresciam inexoravelmente, tudo elementos que hoje arrepiaram os sacerdotes do neoliberalismo. Mesmo no panorama eleitoral o PCP, apesar das tentativas por parte dos seus opositores de o colar ao 25 de novembro e até ilegalizar, vai, na verdade, ter mais votos depois do 25 de novembro que para a constituinte.


É aqui, na minha opinião que podemos encontrar o motivo para a obsessão da direita pelo 25 de novembro e não pelos demais golpes. O 25 de abril teve sobretudo uma tendência política de esquerda, então é preciso para a direita apagar essa história e criar uma visão saneada do que aconteceu condizente com a atual ideologia dominante. Uma visão que dita que na verdade o que havia de esquerda no 25 de abril não era democracia, mas totalitário, que foi preciso o 25 de novembro para “endireitar” e democratizar o país. Apaga-se o papel determinante que as forças de esquerda e os ideais socialistas tiverem na formação da democracia em Portugal. Não pode ficar mais claro do que nas atitudes do Chega, que no 25 de abril recusa cantar a Grândola, mas para o 25 de novembro quer um feriado nacional, diz até que quer “um ajuste de contas com o 25 de abril”. Os outros partidos de direita podem ser menos diretos, mas têm exatamente as mesmas ambições de limpar o que foi o 25 de abril para se ajustar à sua visão do mundo, onde só o capitalismo é opção e tudo o resto é ditadura.


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